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Poesia Descalça

Aqui onde as palavras andam descalças, livres e verdadeiras, onde a poesia não usa sapatos de formalidade—caminha com os pés na terra e coração aberto.

Aqui onde as palavras andam descalças, livres e verdadeiras, onde a poesia não usa sapatos de formalidade—caminha com os pés na terra e coração aberto.

Poesia Descalça

20
Set25

ESTUÁRIO

LucyHare

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O chão molhado cede sob os pés nus, uma lâmina fria que sobe pelos tornozelos. A pele arrepia,carne de galinha, no limbo húmido onde o mundo se desalinha.

O vento salgado gruda nos lábios, sabe a lagrima seca, a cobre e a algas podres. Enfia-se nas narinas, rouco, acre, um cheiro a tempo velho e a salitre.

E é então que o delírio começa

O céu não está em cima, está dentro de mim. Desço pela garganta abaixo, um mergulho às avessas, e encontro um mar de nuvens onde nado de bruços. Os meus ossos são recifes, brancos e quebrados, e por eles passam cardumes de pensamentos prateados.

O sol poente não queima, afoga. É um fogo líquido que me entra pelos olhos dentro, enche a cave do crânio de âmbar e de vinho, e o meu cérebro flutua, uma água-viva, num aquário de luz, sem pensamento, captiva.

Sinto o puxar da lua nas marés das veias, um zumbido profundo,um diapasão no centro do peito. As estrelas não são pontos, são picadas, alfinetadas de frio na nuca suada.

Já não sei onde o corpo acaba. Sou a água que evapora, o sal que resta na pedra, sou o grito da gaivota que se parte no ar, sou o silêncio que fica, pesado e singular.

E no êxtase deste delírio salgado, na vertigem de ser tudo e não ser nada, encontro uma paz do tamanho do abismo: a doce e aterradora sensação de não ter mais fim.

É o delírio do instante. É o mar no pulso. É o céu a bater dentro do peito, humano e divino.

 

12
Set25

RASTOS

LucyHare

Era uma vez um comboio que sulcava a noite,

com seu bater de coração lento e pesado,

levando consigo o cheiro da lenha molhada

e o eco de uma cantiga esquecida pelo povo.

Pronto para as terras que conheço de memória —

aqueles lugares com nomes de santos e alecrins —,

viajo com o peso do que ficou por dizer

e o vapor do café que entibia as mãos.

Os momentos respiram, fugazes, à janela,

enquanto passam vilas de luzes ténues,

casacos embutidos de histórias não contadas,

e o rumor das páginas que ninguém nota.

Ninguém sabe como foi — ou como teria sido —

o peso do tempo, esse pecado silencioso

que carrego comigo como bagagem clandestina:

cartas nunca enviadas, anéis que brillhavam mais.

Avançamos sem pressa, mas sem demora,

como quem sabe que a chegada é apenas um mito.

Atravessamos o toque — breve como um relâmpago —

e seguimos viagem com o sabor do adeus na boca.

Há quem diga que estas linhas férreas são fios de destino,

tecidos por uma mão anciã e cansada.

Eu digo que são versos soltos sobre a terra,

escritos com carvão e lágrimas de ferro.

Em cada paragem, um rosto desfoca-se no vidro,

em cada paisagem, uma promessa por cumprir.

Até que a noite se faça espessa como alcatrão

e as estrelas se confundam com faróis distantes.

E assim seguimos, eternos passageiros

deste comboio que não tem mapa nem hora,

carregando o silêncio como um fardo doce,

entre vapor de café e sombras de amor perdido.

04
Set25

Lisboa, meu amor

LucyHare

Lisboa, meu amor

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Escrevo-te nesta noite em que estou longe de ti, longe do teu céu, de um azul tão teimoso, que parece uma ironia. Escrevo-te e não sobre ti, porque não és um postal, nem um cenário. És a nossa casa colectiva. E quando uma falha, um gemido de metal, leva vidas no teu coração, é a nossa casa que treme.

A Glória não é só um elevador. És tu, Lisboa, a brincar aos montes e descidas, a oferecer-nos, num suor e num rompante, a vista mais bela do mundo. É o suspiro no cimo do miradouro, o riso dos que descem a correr, o beijo roubado no vai-vém. Era um dos teus nervos, um fio condutor de memórias. E hoje está mudo, e ensanguentado, e nós estamos aqui em baixo, a olhar para cima, à procura de respostas que não chegam.

Dizem que vão apurar causas, que vão encontrar responsáveis. E hão-de encontrá-los, é justo e necessário. Mas hoje, meu amor, não é o dia da razão. É o dia do sentimento. É o dia de te dizermos que te sentimos doer e que doemos contigo.

Porque tu não és feita de pedra. És feita da nossa pele. És feita do empedrado que pisamos em crianças, dos elétricos que nos baloiçam contra estranhos que se tornam cúmplices por um instante, do cheiro a castanhas assadas que é o cheiro do Outono. És o lar mental de todos nós, os que moram dentro das tuas muralhas e os que moram longe, mas sonham contigo.

Nos últimos anos, tens amargado tanto. Tens sido fustigada por fogos que não eram teus, fechada num silêncio que não te assenta, e agora este golpe, tão absurdo, tão violento, no teu centro. E nós, a tua gente, que te amamos com um amor crítico e feroz, sentimos cada uma destas dores como uma rachadura na nossa própria alma. A canção diz que és menina e moça. É verdade. És frágil e resiliente, anciã e eternamente nova. E é por isso que te protegem tanto. Porque sabem que, por detrás da força da História, escondes uma vulnerabilidade que nos comove.

Por isso hoje, minha menina, minha moça, deixa-nos ficar aqui um pouco em silêncio contigo. Deixa-nos chorar os que se foram, tão abruptamente, no meio da banalidade de um passeio. Deixa-nos honrar a sua memória não com discursos, mas com um cuidado redobrado.

Prometemos cuidar melhor de ti. Exigir por ti. Amar-te com mais atenção. Para que cada pedaço de ferro que te compõe, cada carris, cada pedra, seja tratado com o respeito que mereces. Para que nunca mais um dos teus suspiros de encantamento se transforme num grito de horror.

Os teus montes hão-de voltar a ser apenas desafios para as pernas e não para o coração. A Glória há-de voltar a ser apenas o nome de uma vista deslumbrante.

Até lá, ficamos aqui. A tua gente. A tua casa.

Com um amor tão velho como tu.

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