ESTUÁRIO

O chão molhado cede sob os pés nus, uma lâmina fria que sobe pelos tornozelos. A pele arrepia,carne de galinha, no limbo húmido onde o mundo se desalinha.
O vento salgado gruda nos lábios, sabe a lagrima seca, a cobre e a algas podres. Enfia-se nas narinas, rouco, acre, um cheiro a tempo velho e a salitre.
E é então que o delírio começa
O céu não está em cima, está dentro de mim. Desço pela garganta abaixo, um mergulho às avessas, e encontro um mar de nuvens onde nado de bruços. Os meus ossos são recifes, brancos e quebrados, e por eles passam cardumes de pensamentos prateados.
O sol poente não queima, afoga. É um fogo líquido que me entra pelos olhos dentro, enche a cave do crânio de âmbar e de vinho, e o meu cérebro flutua, uma água-viva, num aquário de luz, sem pensamento, captiva.
Sinto o puxar da lua nas marés das veias, um zumbido profundo,um diapasão no centro do peito. As estrelas não são pontos, são picadas, alfinetadas de frio na nuca suada.
Já não sei onde o corpo acaba. Sou a água que evapora, o sal que resta na pedra, sou o grito da gaivota que se parte no ar, sou o silêncio que fica, pesado e singular.
E no êxtase deste delírio salgado, na vertigem de ser tudo e não ser nada, encontro uma paz do tamanho do abismo: a doce e aterradora sensação de não ter mais fim.
É o delírio do instante. É o mar no pulso. É o céu a bater dentro do peito, humano e divino.

