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Há uma mulher que perdeu o último eléctrico da Graça
e agora caminha pela Calçada do Carmo abaixo,
pisando as sombras dos azulejos partidos
que contam histórias de naufrágios urbanos.
Os seus sonhos são grandes telas penduradas
no átrio do Teatro Nacional, onde personagens
de peças esquecidas lhe sussurram:
"Lisboa é um palco onde todos representamos
o mesmo papel — o de estrangeiros em casa própria."
Esta madrugada, no miradouro de Santa Catarina,
encontrou um chapéu de sol abandonado
e dentro dele, uma fotografia dos anos 40:
uma rapariga à beira-Tejo com um vestido
que já não existe em nenhum alfaiate.
Dobrou-a em quatro e guardou-a no sapato,
como quem esconde um mapa roubado.
As ruas ensinam-lhe o que as escolas não contam:
- Na Rua da Prata, os fantasmas dos ourives
ainda pesam diamantes com mãos trémulas;
- No Largo do Intendente, os versos malditos
dos poetas bêbados crescem nas fendas
como ervas daninhas;
- E no Cais do Sodré, há um barco fantasma
que só parte para quem não tem regresso
escrito nos bilhetes de identidade.
Ela procura não o destino, mas a curva
onde a Rua Augusta desemboca no mar
e de repente todos os relógios param,
como naquele Verão de 1975 quando o país
prendeu a respiração por onze segundos.
Um vendedor de castanhas na Baixa diz-lhe:
"— Menina, você tem olhos que já viram
o rio correr ao contrário."
Ela não desmente. Há noites em que jura
ter visto o Tejo subir as escadas de Santana
para beijar os pés da estátua do Marquês.
Quando a lua ilumina o Castelo,
ela sobe ao telhado da casa onde nasceu
e escreve, a giz, nos tijolos:
"Aqui jaz uma cidade dentro da cidade,
feita de todas as vezes que me perdi
para me encontrar noutra esquina."
Enquanto isso, no café Martinho da Arcada,
um velho marinheiro acaricia uma garrafa
e murmura: "Aconteceu mesmo?
Ou foi só mais um conto que inventei
para sobreviver ao século XX