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Poesia Descalça

Aqui onde as palavras andam descalças, livres e verdadeiras, onde a poesia não usa sapatos de formalidade—caminha com os pés na terra e coração aberto.

Aqui onde as palavras andam descalças, livres e verdadeiras, onde a poesia não usa sapatos de formalidade—caminha com os pés na terra e coração aberto.

Poesia Descalça

02
Out25

Aquele Instante

LucyHare

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Foi um instante apenas,

matéria de um só segundo.

Ficou a porta aberta, para saber o motivo

de ter fechado depressa, um breve trato mundo.

Refaço o mapa do que não foi dito,

a arquitetura de um talvez.

Um encontro de peles, um quieto suspeito

retirado, deixando um lugar onde a dúvida jaz.

E ainda, uma corrente, quando o acaso nos encontra,

perturba a calma que com cuidado compondo.

A tua pele electrica que me encontra

e acende um fogo antigo, um novo assombro.

Por isso se alguma vez te perguntas, no teu quieto viver,

que eco desse encontro ainda persista,

não é fogo, nem um desesperado quer,

mas o frio que fica depois de uma chuva imprevista.

É a pergunta que nunca comecei,

a pedra única no fundo do mar...

Porquê foi um universo tão depressa separado

da estrela que brevemente, belamente, fez brilhar?

02
Out25

Fuga em Movimento

LucyHare

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Deixo para trás a cidade, um animal de cimento e pressa,

que rosna trânsito e cospe multidões confusas.

Os semáforos piscam ritmos nervosos,

e as caras são um fluxo borrado de ausência.

O ar, espesso de buzinas e alcatrão quente,

gruda-me à pele como uma segunda pele, suja.

Pressiono o travão, escolho "D" de Partida.

Um ligeiro solavanco, o carro agarra-se à estrada.

O volante, frio ao toque, torna-se meu,

um osso que me liga ao asfalto.

E dentro desta cápsula de vidro, começo a meditar.

A mágoa é uma passageira silenciosa no lugar ao lado.

Não olho para ela. Sinto o seu peso, sim,

um volume de ar que cheira a despedidas e a café frio.

Os meus olhos fitam a linha branca, um fio contínuo de salvação.

A cidade, no espelho, encolhe, transforma-se numa mancha de ruído.

Aqui, o único som é o zumbido do pneu no alcatrão,

um mantra baixo e constante que afoga o mundo.

Hesito no pedal. Um segundo de pânico:

e se eu travar? E se voltar para aquele turbilhão?

O coração, esse relógio desregulado, acelera.

O corpo quer enrijecer, travar-me o movimento.

A mente é o pássaro, ainda, a bater contra os vidros,

mas já não por medo—por ânsia de espaço, de horizonte.

E respiro.

Neste espaço que roubei à cidade apressada,

encontro um silêncio que é só meu.

É nele, com as mãos firmes no leme da minha vida,

que aprendo a sossegar o animal assustado que trago dentro de mim.

E assim rolo,

nem em fuga, nem em busca,

mas no lugar exacto onde a vida acontece:

entre as memórias e os sonhos,

entre o agora e o futuro.

A estrada é o meu caminho de volta. E eu, finalmente, a conduzir.

20
Set25

ESTUÁRIO

LucyHare

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O chão molhado cede sob os pés nus, uma lâmina fria que sobe pelos tornozelos. A pele arrepia,carne de galinha, no limbo húmido onde o mundo se desalinha.

O vento salgado gruda nos lábios, sabe a lagrima seca, a cobre e a algas podres. Enfia-se nas narinas, rouco, acre, um cheiro a tempo velho e a salitre.

E é então que o delírio começa

O céu não está em cima, está dentro de mim. Desço pela garganta abaixo, um mergulho às avessas, e encontro um mar de nuvens onde nado de bruços. Os meus ossos são recifes, brancos e quebrados, e por eles passam cardumes de pensamentos prateados.

O sol poente não queima, afoga. É um fogo líquido que me entra pelos olhos dentro, enche a cave do crânio de âmbar e de vinho, e o meu cérebro flutua, uma água-viva, num aquário de luz, sem pensamento, captiva.

Sinto o puxar da lua nas marés das veias, um zumbido profundo,um diapasão no centro do peito. As estrelas não são pontos, são picadas, alfinetadas de frio na nuca suada.

Já não sei onde o corpo acaba. Sou a água que evapora, o sal que resta na pedra, sou o grito da gaivota que se parte no ar, sou o silêncio que fica, pesado e singular.

E no êxtase deste delírio salgado, na vertigem de ser tudo e não ser nada, encontro uma paz do tamanho do abismo: a doce e aterradora sensação de não ter mais fim.

É o delírio do instante. É o mar no pulso. É o céu a bater dentro do peito, humano e divino.

 

12
Set25

RASTOS

LucyHare

Era uma vez um comboio que sulcava a noite,

com seu bater de coração lento e pesado,

levando consigo o cheiro da lenha molhada

e o eco de uma cantiga esquecida pelo povo.

Pronto para as terras que conheço de memória —

aqueles lugares com nomes de santos e alecrins —,

viajo com o peso do que ficou por dizer

e o vapor do café que entibia as mãos.

Os momentos respiram, fugazes, à janela,

enquanto passam vilas de luzes ténues,

casacos embutidos de histórias não contadas,

e o rumor das páginas que ninguém nota.

Ninguém sabe como foi — ou como teria sido —

o peso do tempo, esse pecado silencioso

que carrego comigo como bagagem clandestina:

cartas nunca enviadas, anéis que brillhavam mais.

Avançamos sem pressa, mas sem demora,

como quem sabe que a chegada é apenas um mito.

Atravessamos o toque — breve como um relâmpago —

e seguimos viagem com o sabor do adeus na boca.

Há quem diga que estas linhas férreas são fios de destino,

tecidos por uma mão anciã e cansada.

Eu digo que são versos soltos sobre a terra,

escritos com carvão e lágrimas de ferro.

Em cada paragem, um rosto desfoca-se no vidro,

em cada paisagem, uma promessa por cumprir.

Até que a noite se faça espessa como alcatrão

e as estrelas se confundam com faróis distantes.

E assim seguimos, eternos passageiros

deste comboio que não tem mapa nem hora,

carregando o silêncio como um fardo doce,

entre vapor de café e sombras de amor perdido.

04
Set25

Lisboa, meu amor

LucyHare

Lisboa, meu amor

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Escrevo-te nesta noite em que estou longe de ti, longe do teu céu, de um azul tão teimoso, que parece uma ironia. Escrevo-te e não sobre ti, porque não és um postal, nem um cenário. És a nossa casa colectiva. E quando uma falha, um gemido de metal, leva vidas no teu coração, é a nossa casa que treme.

A Glória não é só um elevador. És tu, Lisboa, a brincar aos montes e descidas, a oferecer-nos, num suor e num rompante, a vista mais bela do mundo. É o suspiro no cimo do miradouro, o riso dos que descem a correr, o beijo roubado no vai-vém. Era um dos teus nervos, um fio condutor de memórias. E hoje está mudo, e ensanguentado, e nós estamos aqui em baixo, a olhar para cima, à procura de respostas que não chegam.

Dizem que vão apurar causas, que vão encontrar responsáveis. E hão-de encontrá-los, é justo e necessário. Mas hoje, meu amor, não é o dia da razão. É o dia do sentimento. É o dia de te dizermos que te sentimos doer e que doemos contigo.

Porque tu não és feita de pedra. És feita da nossa pele. És feita do empedrado que pisamos em crianças, dos elétricos que nos baloiçam contra estranhos que se tornam cúmplices por um instante, do cheiro a castanhas assadas que é o cheiro do Outono. És o lar mental de todos nós, os que moram dentro das tuas muralhas e os que moram longe, mas sonham contigo.

Nos últimos anos, tens amargado tanto. Tens sido fustigada por fogos que não eram teus, fechada num silêncio que não te assenta, e agora este golpe, tão absurdo, tão violento, no teu centro. E nós, a tua gente, que te amamos com um amor crítico e feroz, sentimos cada uma destas dores como uma rachadura na nossa própria alma. A canção diz que és menina e moça. É verdade. És frágil e resiliente, anciã e eternamente nova. E é por isso que te protegem tanto. Porque sabem que, por detrás da força da História, escondes uma vulnerabilidade que nos comove.

Por isso hoje, minha menina, minha moça, deixa-nos ficar aqui um pouco em silêncio contigo. Deixa-nos chorar os que se foram, tão abruptamente, no meio da banalidade de um passeio. Deixa-nos honrar a sua memória não com discursos, mas com um cuidado redobrado.

Prometemos cuidar melhor de ti. Exigir por ti. Amar-te com mais atenção. Para que cada pedaço de ferro que te compõe, cada carris, cada pedra, seja tratado com o respeito que mereces. Para que nunca mais um dos teus suspiros de encantamento se transforme num grito de horror.

Os teus montes hão-de voltar a ser apenas desafios para as pernas e não para o coração. A Glória há-de voltar a ser apenas o nome de uma vista deslumbrante.

Até lá, ficamos aqui. A tua gente. A tua casa.

Com um amor tão velho como tu.

24
Ago25

Do Breve e do Eterno

LucyHare

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Somos uma vez na vida. Poeira cósmica,consciência despertada, num universo indiferente à nossa passagem.

Não há destino, apenas escolhas. Não há sorte, apenas consequências. Cada instante é um acto de vontade, um salto no vazio que nos define.

Perguntamos: para quê? Por quê? E o silêncio do cosmos responde com o eco das nossas próprias perguntas.

A beleza não está no eterno, mas no efémero que tocamos. No amor que ousamos viver, na dor que nos fez mais humanos.

Somos uma vez na vida. Finitude que nos liberta, não para o desespero, nas para a coragem de ser.

Aceitar o tempo não é render-se. É encontrar a eternidade no agora que nos escapa.

18
Ago25

A Única Cela

LucyHare

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Entre quatro paredes que não se veem,  

pisamos o mesmo chão imaginário.  

O carcereiro somos nós -  

e a sentença,  

um autoexílio.  

 

Nem correntes, nem algemas,  

apenas o eco de um riso antigo  

que já não nos soa verdadeiro.  

E no silêncio da alba,  

quando tudo dorme,  

ouvimos o tilintar das chaves  

que sempre estiveram  

no nosso bolso.  

 

Liberdade é esquecer

que alguma vez estivemos presos.

29
Jul25

Risco Calculado

LucyHare

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São homens que correm  

contra o relógio de fogo,  

mulheres que medem  

o peso do medo  

e ainda assim dobram-se  

para o carregar.  

 

Não usam capas,  

usam botas com lama  

e um cansaço antigo  

que lhes pinta olheiras  

de noites mal dormidas.  

 

Conhecem o cheiro  

das casas a arder,  

o gosto amargo  

do suor e do pó,  

o som abafado  

de um choro atrás da porta.  

 

E mesmo assim,  

quando a sirene os chama,  

erguem-se outra vez,

não por glória,  

não por mito,  

mas porque alguém tem de ser  

a linha entre o caos  

e o que ainda se pode salvar.  

 

São apenas gente.  

Gente que escolheu  

olhar o inferno de frente  

e dizer:  

Hoje não..

29
Jul25

Dança do Sol no Oceano Dourado

LucyHare

Na vastidão do oceano, onde o céu se encontra com as águas, nasce uma dança de cores ao entardecer. O sol, com a sua luz dourada, despede-se do dia, levando consigo os desafios defrontados e as conquistas celebradas. Assim como o astro-rei, somos chamados a posicionar-nos, a defender as nossas convicções com coragem e autenticidade.  

Viver em harmonia com a nossa consciência é um ato de respeito, tanto para nós mesmos quanto para os outros. Quando olhamos para o horizonte, percebemos que o caminho para o crescimento pessoal, intelectual e ético requer uma bússola interna, um compromisso firme com aquilo que acreditamos. Cada decisão que tomamos é uma onda que se forma à beira-mar, refletindo os nossos valores e princípios.  

Nesta caminhada, podemos deparar com tempestades e calmarias. As vozes externas podem tentar desviar-nos do nosso curso, mas é essencial lembrar que, assim como o sol sempre volta a brilhar após a noite, também devemos ser resilientes. É no calor do respeito mútuo que construímos pontes, transformando diferenças em aprendizagens.  

À medida que o sol mergulha nas águas do oceano, ele ensina a arte da reflexão. Que possamos encarar o nosso próprio reflexo na superfície da água e ouvir a sabedoria que flui de dentro de nós. Crescer é entender que somos parte de um todo, e que as nossas convicções, quando defendidas com amor e entendimento, podem criar ondas de mudança.  

Assim, ao final de cada dia, ao contemplar o pôr do sol sobre o mar dourado, lembremos que viver é uma arte. E, como artistas das nossas próprias vidas, devemos pintar cada momento com as cores da integridade, da coragem e do respeito. Que as nossas convicções nos guiem, iluminando não apenas o nosso caminho, mas também aqueles que cruzam as nossas vidas.

 

29
Jul25

Três Pátrias em Mim

LucyHare

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Sou feita de pão quente,  

manteiga e açúcar a derreter,  

dos segredos que a avó contava  

enquanto o sol se punha a crescer.  

 

Lisboa deu-me o rio e o fado,  

o cheiro a peixe e a calçada molhada,  

as palavras que se perdem no vento,  

mas voltam sempre, feitas de nada.  

 

Trás-os-Montes trouxe-me a terra,  

o barro nos pés, o frio nos ossos,  

os animais que falam sem pressa,  

o silêncio cheio de regresso.  

 

Viseu guardou-me no colo,  

no aconchego das mãos enrugadas,  

no riso das raparigas da rua,  

nas histórias nunca acabadas.  

 

E agora, quando me perguntam  

de onde venho, eu sorrio:  

não me divido, multiplico-me,

sou três vezes o meu próprio rio.  

 

 

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